Frases e Trechos de Hermann Hesse – Livro: “O Lobo da Estepe”*


“Já detalhei alguns aspectos exteriores do lobo da estepe; dava logo à primeira vista a impressão de um homem superior, nada vulgar e de extraordinário talento; seu rosto cheio de espiritualidade, e o jôgo extremamente delicado e inquieto dos seus gestos, refletiam uma vida anímica interessantíssima, excessivamente agitada, grandemente delicada e sensível; quando se lhe falava, e êle – o que nem sempre sucedia – ultrapassando os limites convencionais e deixando-se levar pela sua natureza original, usava expressões singularmente apropriadas e intensas, então não tinha outro remédio senão o de submeter-se-lhe; êle havia pensado mais do que outros homens e tinha, em questões de espírito, aquela segura reflexão e sabedoria que só possuem as pessoas verdadeiramente espirituais, que carecem inteiramente de ambição e nunca desejam brilhar, nem convencer os outros, nem sequer ter razão.”

“[...] fui tendo consciência de que a sua enfermidade se não devia a imperfeições da sua natureza, mas antes à grande abundância de seus dotes e faculdades desarmônicas. Pude comprovar que Haller era um gênio do sofrimento, que êle, no sentido de muitos aforismos de Nietzche, tinha exercitado dentro de si uma capacidade de sofrimento ilimitada, genial, terrível; compreendi ao mesmo tempo que a base do seu pessimismo não traduzia desprêzo pelo mundo, mas desprêzo por si mesmo, pois se, sem rodeios inúteis e com um sentido demolidor se referia às instituições e às pessoas, era sempre e em primeiro lugar contra êle mesmo que dirigia os seus sarcasmos, era êle próprio o primeiro a quem odiava e negava.”
“Cada época, cada cultura, cada costume e tradição possuem seu estilo, suas ternuras e durezas peculiares, suas crueldades e belezas; consideram certos sofrimentos como naturais, aceitam certos males com paciência. A vida humana converte-se em verdadeira dor, em verdadeiro inferno, apenas quando duas épocas, duas culturas ou religiões se entrecruzam.”

“Quando Harry, por exemplo, na sua qualidade de homem, tinha um belo pensamento ou experimentava uma sensação nobre e delicada, ou praticava ainda uma das chamadas boas ações, o lobo que estava dentro de si mostrava os dentes, ria-se e apontava-lhe com feroz sarcasmo, quão ridícula ficava a um lobo da estepe esta elegante farça,a um lobo perfeitamente conciente do que lhe ficava bem – que era caminhar solitariamente pelas estepes, beber de vez em quando sangue ou caçar uma loba; e do ponto de vista do lobo, toda a ação humana se afigurava horrivelmente cômica e absurda, estúpida e vã. Exatamente o mesmo acontecia quando Harry se sentia lobo e procedia como tal, quando mostrava os dentes aos outros, quando respirava ódio e inimizade por todos os homens e suas maneiras e costumes hipócritas e desnaturados. Era então, quando precisamente se punha à espreita a parte humana que tinha dentro de si, lhe chamava animal e fera, o lançava a perder e lhe corrompia tôda a satisfação, na sua essência de lobo, simples, selvagem e cheio de energia.”

“Assim se produzem, como preciosa e fugitiva espuma de felicidade sôbre o mar do sofrimento, tôdas aquelas obras de arte em que um só atormentado homem se eleva por um momento, tão alto sôbre seu próprio destino, que a sua ventura reluz como uma estrela e parece a todos os que a vêem, alguma coisa eterna, como o seu próprio sonho de felicidade. Todos estes homens, sejam quais forem os nomes de seus feitos e obras, não têm realmente em geral uma verdadeira vida, isto é, sua vida não é nenhuma essência, não tem forma, não são heróis ou artistas ou pensadores do mesmo modo que outros são juízes, sapateiros ou maestros; sua existência é um movimento, um fluxo e refluxo eternos e penosos, está infeliz e dolorosamente desgarrada, é terrível e não tem sentido, se não estivermos dispostos a vêr esse sentido, precisamente naqueles escassos sucessos, feitos idéias e obras que luzem acima do caos de tais vidas. Entre os homens dessa espécie surgiu o pensamento perigoso e trágico de que talvez a vida humana não passe dum tremendo erro, um abôrto violento e desgraçado, um ensaio selvagem e horrorosamente infeliz da natureza. Mas também entre êles surgiu a outra idéia de que o homem talvez não seja apenas um aninal meio racional, mas um filho dos deuses destinado a imortalidade.”

“Alcançou o seu objetivo, foi cada vez mais independente, ninguém tinha nada que mandar-lhe, a ninguém tinha de dar conta dos seus atos, só êle e livremente determinava a seu bel prazer, o que havia de fazer ou o que havia de deixar. Todo o homem forte alcança infalivelmente aquilo que procura com verdadeiro afinco. Porém, em plena liberdade conseguida, bem depressa observou Harry que essa independência era a morte, que estava só, que o mundo o abandonava de um modo sinistro, que os homens nada lhe interessavam; mais do que isso, que êle mesmo a si pouco interessava, que lentamente se ia asfixiando numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de contacto e de isolamento. Porque, afinal, já a solidão e a independência não eram o seu afã e o seu objetivo, mas o seu destino e a sua condenação; que seu mágico desejo se cumprira e já não era possível retirá-lo, que já de nada servia estender os braços abertos, cheio de nostalgia e com o coração pleno de boa vontade, oferecendo solidariedade e união; agora deixavam-no só. E não é que fosse odioso, detestado e antipático aos outros. Tinha ao contrário muitos amigos. Muitos lhe queriam bem. Mas era sempre unicamente simpatia e amabilidade o que encontrava; convidavam-no, faziam-lhe presentes, escreviam-lhe bonitas cartas, mas ninguém se lhe aproximava espiritualmente, por nenhuma parte surgia intimidade com alguém, e ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar da sua vida. Agora envolvia-o o ambiente de solidão, uma atmosfera de quietude, um afastamento do mundo que o rodeava, uma incapacidade de relações, contra a qual nada podiam a vontade, o esfôrço ou a nostalgia. Êste era um dos característicos mais importantes da sua vida.”

“Como tôda a fôrça pode também converter-se numa fraqueza (e de resto em determinadas circunstâncias se converte necessariamente), assim pode ao contrário o suicida típico transformar a sua debilidade numa fôrça e num apoio, o que acontece até com extraordinária frequência. Entre estes casos se inclue também o de Harry, o lobo da estepe. Como milhares de indivíduos da sua espécie, da idéia de que a todo momento lhe estava aberto o caminho da morte, não só se criava complicações fantásticas melancólica-infantis, mas da mesma idéia extraía consolo e apoio. Certamente que nele, como em todos os homens assim, tôda a comoção, tôda a dor, tôda a má situação da vida, provocavam o desejo de se substrair a elas por meio da morte. Mas a pouco e pouco foi extraindo desta predisposição uma filosofia útil para a vida. A familiaridade com a idéia de que aquela saída extrema estava constantemente aberta, dava-lhe forças, fazia-o curioso de observar as dores e as situações desagradáveis, e quando tudo lhe corria mal, podia exprimir seus sentimentos com feroz alegria, com maligna alegria: “Tenho grande curiosidade de ver quanto é realmente capaz de aguentar um homem. Quando alcançar o limite do suuportável, poderei simplesmente abrir a porta e logo estarei livre”. Há muitos suicidas que desta idéia conseguem tirar forças extraordinárias.”

“O “burguês”, pois, como estado sempre latente dentro do humano, não é outra coisa senão o ensaio duma compensação, senão o desejo dum têrmo médio de convivência entre os numerosos extremos e dilemas contrapostos da humana conduta. Se tomamos como exemplo qualquer dêstes dilemas de contraposição – o de um santo e o de um libertino – compreender-se-á logo a nossa alegoria. O homem tem a faculdade de entregar-se inteiramente às coisas espirituais, ao intento de aproximação com as coisas divinas, ao ideal dos santos. Tem também, por outro lado, a faculdade de entregar-se por completo à vida do instinto, aos apetites sensuais, e de dirigir todo o seu esforço para a obtenção de prazeres momentâneos. Um dos caminhos acaba na santidade, no martírio do espírito, na própria renúncia e sacrifício por amor de Deus. O outro caminho acaba na libertinagem, no martírio dos instintos, no próprio sacríficio em proveito da decomposição e do aniquilamento. Ora, o burguês cuida de viver num confortável meio têrmo entre ambos os caminhos.”

“O homem não é, absolutamente, um resultado firme e duradouro (êste foi, apesar dos pressentimentos contrapostos dos seus sábios, o ideal da antiguidade), mas um ensaio e uma transição; não é mais do que a ponte estreita e perigosa entre a natureza e o espírito.”

*Hermann Hesse nasceu na Alemanha em 1877, naturalizou-se suíço em 1923 e faleceu em 1962. “O Lobo da Estepe” e “Sidarta” são seus livros mais conhecidos. Viajou para Índia em 1911 e conheceu o budismo, doutrina que, ao lado da psicanálise junguiana, influenciou profundamente sua obra e sua exímia capacidade de desvendar a alma humana. Após escrever o livro “O Jogo das Contas de Vidro”, uma das mais belas e profundas obras na história da literatura mundial, ganhou o Prêmio Goethe e alguns meses depois, o Prêmio Nobel de Literatura em 1946.

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